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Doar órgãos é um ato de caridade cristã?

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Aleteia Vaticano - publicado em 06/02/13
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As técnicas para a extração de órgãos em um terceiro apresentam novos questionamentos éticos que interpelam os cristãos. Qual é a postura dos católicos?

Para os católicos, o transplante de órgãos é conforme à lei moral se os perigos e riscos físicos e psíquicos, em que o doador incorre, forem proporcionais ao bem que se procura em favor do destinatário. A doação de órgãos após a morte é um ato nobre e meritório e deve ser encorajado como uma manifestação de generosa solidariedade. Mas não é moralmente aceitável se o doador ou os seus representantes não tiverem dado o seu consentimento expresso.

A doação de órgãos constitui uma forma particular de caridade. A Igreja incentiva a doação de órgãos porque permite muitas vezes curar, inclusive salvar vidas, e porque se inscreve em uma lógica de caridade e de gratuidade.

Doar um órgão é autorizar o transplante de um dos próprios órgãos – considerado sadio e em estado de cumprir sua função – em outra pessoa, na qual o mesmo órgão falha e, assim, dar-lhe a possibilidade de melhorar as suas condições de vida e inclusive impedir a sua morte.

Para a Igreja, esta “doação” constitui uma forma particular de caridade, repleta de sentido, em uma época como a nossa, marcada por tantas formas de egoísmo. Entra em uma lógica de gratuidade, determinante para uma concepção correta da vida e a plena realização de uma justiça sã, na medida em que não se trata de doar simplesmente algo que nos pertence, mas de doar algo de nos mesmos.

No entanto, os seus processos afetam um âmbito particular da ciência médica, que exige, apesar de todas as esperanças de saúde e de vida, que suscite, como em todo progresso humano, uma atenta reflexão antropológica e ética.

De fato, as exigências éticas do transplante de um doador falecido variam muito com relação às de um doador vivo.

Para que a doação de órgãos seja um ato de caridade, devem ser respeitadas algumas exigências éticas. No caso de um doador vivo, é necessário que haja consentimento e ausência de riscos excessivos para ele.

“O consentimento informado é condição prévia de liberdade para que o transplante seja considerado um dom e não seja interpretado como um ato coercitivo ou de abuso.”

Este ponto pode, no entanto, ser delicado na prática. Porque, para que um transplante tenha êxito, é necessário que o órgão que se transplanta seja compatível com o sistema imunológico do destinatário. Para isso, começa-se por procurar na própria família, sabendo que há mais probabilidade de encontrar alguém compatível. Mas então pode haver risco de pressões familiares (pressiona-se alguém para que doe seu órgão) e, portanto, risco de coação ao doador, inclusive de exploração.

É obrigatório garantir que o consentimento do doador seja verdadeiramente fruto de uma decisão livre e esclarecida. O doador deve ser informado sobre todos os riscos que implica aceitar fazer essa doação.

Além disso, para a Igreja, a doação de órgãos só pode ser realizada se os perigos e riscos físicos e psíquicos, em que o doador incorre, forem proporcionais ao bem que se procura em favor do destinatário.

Corresponde ao médico discernir, com o possível doador, se os riscos vinculados ao transplante de órgão são proporcionais ao benefício esperado para o paciente. Será preciso levar em consideração o estado de saúde tanto do doador quanto do beneficiário.

Dito isso, só pode haver extração de órgãos vitais depois da morte, já que essa extração provocaria inevitavelmente a morte do doador.

No caso de um doador falecido, é necessário que o consentimento seja dado pela pessoa durante a sua vida ou pela sua família. Também é necessário garantir que a pessoa tenha realmente falecido.

O critério geralmente utilizado para estabelecer o falecimento de uma pessoa é o cessar completo e irreversível de toda atividade cerebral. Mas, hoje em dia, as técnicas médicas permitem manter artificialmente as batidas do coração e a respiração em uma pessoa cujo cérebro perdeu todas as suas atividades (podendo ser considerada, portanto, como falecida) e na qual os órgãos, beneficiando-se de uma boa irrigação sanguínea, têm então todas as possibilidades de poder sobreviver ao decesso do paciente.

Estes progressos aumentaram consideravelmente as possibilidades de transplantes de órgãos procedentes de cadáveres, mas alguns também podem ter a tentação de instrumentalizar os corpos, sem respeitar a vontade do falecido ou da sua família, ou realizando transplantes sem estar certos da morte da pessoa.

“A doação de órgãos após a morte é um ato nobre e meritório” (Catecismo da Igreja Católica). Se a Igreja continua falando de doação, inclusive após o falecimento da pessoa, é porque considera que o transplante de órgãos sempre é fruto de um dom voluntário e generoso de uma pessoa; que não há apropriação do corpo; que o objetivo buscado – curar uma pessoa – é louvável.

Falar de consentimento é, evidentemente, mais complexo no caso de uma pessoa falecida. Na ausência da disposição do doador antes da sua morte, a Igreja considera que o acordo dos familiares possui um valor ético. Assim, acontece frequentemente que a técnica do transplante de órgãos é realizada por um gesto de gratuidade total por parte dos familiares. Neste caso, a decisão não recai sobre a pessoa falecida, mas sobre os seus familiares.

Os procedimentos dirigidos a garantir o consentimento da pessoa falecida variam segundo os países e os diverso sistemas jurídicos. Existem duas alternativas: o consentimento presumido e a rejeição presumida. No primeiro caso, supõe-se que a pessoa consentiria com o transplante de órgão, salvo que tenha avisado do contrário antes da sua morte. No segundo caso, considera-se que a pessoa não consentiria, salvo que tenha avisado do contrário antes da sua morte.

Também há variáveis no interior desses sistemas. Estas se centram no grau de consideração da vontade da família do defunto. Não corresponde à Igreja fazer um juízo de cada um destes procedimentos, mas ela recorda os princípios que devem regê-los: o transplante deve ser fruto de uma doação e a vontade da família deve ser levada em consideração.

Pode-se deduzir destes princípios que um sistema de consentimento presumido que negasse à família o direito de opor-se ao transplante não estaria de acordo com a postura da Igreja.
Os órgãos vitais só podem ser transplantados de um cadáver. Do contrário, tal transplante seria, por si mesmo, a causa da morte da pessoa. Mas como estabelecer com exatidão o falecimento de uma pessoa?

Segundo João Paulo II, a morte de uma pessoa consiste na “total desintegração do complexo unitário e integrado que a pessoa é em si mesma, como consequência da separação do princípio vital, ou da alma, da realidade corporal da pessoa”. E acrescenta que “o evento da morte produz inevitavelmente sinais biológicos, que a medicina aprendeu a reconhecer de maneira sempre mais específica”.

O primeiro tecido que se descompõe é o sistema nervoso. Mas, como destaca o professor Pablo Requera Meana, a função deste sistema é tal, que sua perda torna impossível a manutenção da integração própria do organismo como um todo. Esta perda, que se manifesta pelo cessar completo de toda atividade cerebral, pode, portanto, ser considerada como um sinal certo da morte da pessoa.

Este ponto foi confirmado por João Paulo II. Para ele, demonstrar a morte de uma pessoa implica na “constatação segundo parâmetros bem determinados e em geral compartilhados pela comunidade científica internacional, da cessação total e irreversível de qualquer atividade encefálica (cérebro, cerebelo e tronco encefálico), como sinal da perda da capacidade de integração do organismo individual como tal”.

Pode-se então questionar a legitimidade dos transplantes de doadores chamados “em coração parado”, como os autorizados em alguns países (Estados Unidos, França, Holanda etc.). Trata-se, na maioria dos casos, de vítimas de infarto cujo coração parou, mas cujo cérebro continua dando sinais de atividade. Geralmente, este último cessou toda atividade, mas o cerebelo e o tronco cerebral continuam ativos. E já houve casos de pessoas consideradas “em coração parado” que recuperaram a consciência e voltaram a levar uma vida normal depois.

Estes transplantes parecem estar, portanto, em contradição com o ensinamento da Igreja. Em um contexto assim, Bento XVI esclareceu: “Não pode haver a mínima suspeita de arbítrio e onde a certeza ainda não for clara deve prevalecer o princípio de precaução”.

O destino dos órgãos deve ser decidido segundo critérios imunológicos ou clínicos. Para que a dimensão de gratuidade permaneça presente, os órgãos não devem ser comercializados.

As questões éticas geralmente apresentadas pela doação de órgãos provêm dessa tensão que existe entre o respeito ao defunto e as legítimas expectativas do doente, tensão esta que volta a aparecer também quando se trata de determinar, em um contexto de penúria, a que enfermo deve ir o órgão sadio extraído.

Para Bento XVI, “eventuais lógicas de compra-venda dos órgãos, assim como a adoção de critérios discriminatórios ou utilitaristas, estariam totalmente em contraste com o significado subentendido da doação que sozinhos se poriam fora de questão, qualificando-se como atos moralmente ilícitos”.

O primeiro princípio destacado pela Igreja é a não comercialização de órgãos, que consiste em rejeitar todo procedimento encaminhado a comercializar órgãos humanos ou a considerá-los como artigos de troca e venda. Este tipo de prática, considera a Igreja, é moralmente inaceitável, na medida em que usar o corpo como um objeto é violar a dignidade da pessoa humana.

A lógica da gratuidade deve presidir a doação de órgãos! E isso sem contar que a comercialização poderia fazer surgir a tentação de extrair órgãos de pessoas que não teriam consentido.

O segundo princípio destacado pela Igreja é que não pode haver critérios discriminatórios ou utilitaristas na atribuição dos órgãos a transplantar. Para ela, estabelecer listas de espera para os transplantes baseadas em critérios claros e corretamente fundamentados é absolutamente necessário. Tais critérios devem levar em consideração exclusivamente fatores imunológicos ou clínicos das pessoas interessadas. Qualquer outro critério seria totalmente arbitrário e subjetivo, afirma a Igreja, pois não reconheceria o valor intrínseco que toda pessoa humana tem e que é independente de qualquer circunstância externa.

Conclusão

Abordamos aqui a doação de órgãos principalmente no que se refere ao paciente e à sua família, ao médico e ao doador. Mas as suas implicações ultrapassam o conjunto de pessoas diretamente envolvidas. Em sua encíclica “Caritas in veritate”, Bento XVI atribui os males que afligem a sociedade atual à falta sobretudo de caridade e de gratuidade nas relações sociais. Para ele, é necessário redescobrir estas dimensões para resolver a crise atual; isso é inclusive “uma exigência da própria razão econômica”. De fato, indica, “sem a gratuidade, não se alcança sequer a justiça”. E doação de órgãos se inscreve nesta lógica; está, portanto, chamada a produzir efeitos benéficos, muito além da pessoa doente, ainda sem que sejam perceptíveis imediatamente.

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