Dr. Hamilton Naki: quando Deus é o único espectador
Além do natural desejo de progredir e aperfeiçoar-se, em quase tudo o que fazemos está implícito o desejo inconsciente de ser reconhecidos pelos outros, admirados, aplaudidos. Este não é o caso do chamado “cirurgião clandestino”.
HamiltonNaki, que faleceu em 2005, aos 89 anos, começou como jardineiro na Universidade de Cidade do Cabo. Depois foi auxiliar de limpeza de jaulas do Departamento Médico e, após um tempo, trabalhou como anestesista de animais. O mais importante é que sua destreza tornou possível o primeiro transplante de coração humano.
A morte de Naki, condenado durante quase quatro décadas ao anonimato por ser negro, nos recorda um dos episódios mais vergonhosos da história da medicina moderna.
Na África do Sul racista do apartheid, onde havia diferenças no sistema jurídico em função da cor da pele, foi Christian Barnard – sul-africano branco – quem, em 1967, recebeu todas as honras por levar a cabo o primeiro transplante de um coração humano. Mas foi Naki, o humilde caronista, quem, naquela noite, tornou possível o que durante séculos foi um desafio impossível para a medicina.
Em 2 de dezembro de 1967, Denise Darvaald, uma jovem branca atropelada ao cruzar a rua, foi transferida com caráter de urgência ao Groote Schuurhospital, onde lhe foi diagnosticada morte cerebral, ainda que seu coração continuasse batendo.
Em outro leito do mesmo hospital, Louis Washkansky, um lojista de 52 anos, esgotava suas últimas esperanças de viver. Então, o Dr. Barnard decidiu tentar o transplante. Em uma épica intervenção de 48 horas, as duas equipes conseguiram extrair o coração da jovem e implantá-lo no corpo de Louis. Os assistentes recordam a delicadeza com que Naki limpou o órgão de todo vestígio de sangue antes de que Barnard voltasse a fazê-lo bater no peito do homem.
Mas o que fazia Naki, um cidadão de segunda categoria, que havia abandonado os estudos aos 14 anos por necessidade, no meio de uma das cirurgias mais destacadas do século? Talvez as palavras do célebre Barnard, pouco antes da sua morte, resumam isso: “Ele tinha mais perícia técnica do que eu jamais tive. É um dos maiores pesquisadores de todos os tempos no campo dos transplantes, e teria chegado muito longe se as condições sociais tivessem permitido”.
Nascido em 1926, em uma aldeia do antigo protetorado britânico do Transkei, tudo parecia condená-lo – como ao resto dos seus conterrâneos negros – a uma existência mísera no iníquo regime do apartheid. Pouco a pouco, suas capacidades foram lhe permitindo chegar a cargos de responsabilidade.
De limpar jaulas, passou a intervir em cirurgias de animais do laboratório, onde teve a oportunidade de anestesiar, operar e, finalmente, transplantar órgãos em animais como cachorros, coelhos e galinhas. De maneira encoberta, Naki havia se tornado técnico de laboratório.
O frequentemente ingrato trabalho de fazer experimentos com animais lhe permitiu desenvolver suas habilidades cirúrgicas: “Agora posso me alegrar por que tudo seja conhecido. A luz foi acesa e já não há escuridão”, disse esse herói clandestino ao receber, em 2002, a ordem de Mapungubwe, uma das maiores honras do seu país, pela sua contribuição à ciência médica. Até seus últimos dias, um dos maiores cirurgiões do século sobreviveu com um modesto salário de jardineiro.
O melhor que podemos desejar é que Deus seja o espectador das nossas ações. Ninguém é capaz de olhar para nós com melhores disposições, penetração e discernimento. É consolador saber que Deus conhece o mais íntimo dos nossos pensamentos, ações e sentimentos.
Um dos maiores cirurgiões do mundo, desconhecido por ser negro
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Javier Ordovás - published on 03/06/14
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