Ler a Bíblia e entendê-la corretamente são tarefas, às vezes, difíceis. Requerem paciência e treinamento, atenção aos detalhes, algum conhecimento geral dos contextos em que esses textos foram escritos e a humildade intelectual para admitir que alguém está frequentemente errado. Mas, antes de mais nada, a Bíblia precisa ser lida com um espírito aventureiro, disposto a lidar com suas muitas "excentricidades".
O mesmo vale para a arte religiosa. Na maioria das vezes, ficamos perplexos com algumas obras de arte encontradas em catedrais, basílicas ou manuscritos. Essas obras podem desafiar a nossa interpretação.
Uma delas é a estátua de Moisés, esculpida por Michelangelo. Encomendada em 1505 pelo Papa Júlio II, a escultura colossal retrata estranhamente o legislador bíblico com dois chifres na cabeça. Mesmo que isso possa parecer uma esquisitice à primeira vista, a escolha está longe de ser uma novidade atribuível ao gênio renascentista.
Na verdade, o motivo de retratar o "Moisés Chifrudo" pode ser encontrado com relativa facilidade em manuscritos medievais. É o resultado de uma tradução incorreta, amplamente difundida, do hebraico para o latim . Mais uma vez, a Vulgata, de Jerônimo, é a culpada.
O texto, encontrado em Êxodo (Cf. Ex 34, 29-30) é o seguinte:
"Descendo do monte, Moisés não sabia que a pele de seu rosto se tornara brilhante, durante a sua conversa com o Senhor. E, tendo-o visto Aarão e todos os israelitas, notaram que a pele de seu rosto se tornara brilhante e não ousaram aproximar-se dele."
De fato, a palavra hebraica usada para significar “radiante” ou “brilhante” é qaran. Ele compartilha a mesma raiz da palavra usada para “chifres”, qeren. Na verdade, no hebraico moderno, a palavra que se refere a um raio de sol é qeren, como se se falasse de "chifres do sol".
Portanto, de certa forma, não é de se admirar que, ao traduzir a Bíblia para o latim, Jerônimo descreveu o rosto de Moisés como cornuto, ou seja, "chifrudo", em vez de "radiante".
Esta escolha editorial conduziu ao motivo iconográfico que muitos artistas, incluindo Michelangelo, escolheram para representar a figura bíblica ao descer do Sinai.
Mas a tradução de Jerônimo também pode não estar totalmente errada. No mundo antigo, os chifres eram símbolos de poder e autoridade. Na verdade, a maioria dos deuses do mundo antigo tinha chifres, em uma clara referência à besta mais poderosa da terra - o touro, o boi selvagem, o "Behemoth" bíblico.
Naquela época, os chifres ainda não eram um atributo exclusivo dos demônios, nem sequer associados ao mal. Alguns estudiosos suspeitam que Jerônimo estava tentando sugerir que Moisés havia sido imbuído de uma força divina após sua descida da montanha.
Seja como for, a maioria dos estudiosos concorda: Jerônimo simplesmente cometeu um errinho de tradução.
Enfim, não deixe de visitar a galeria abaixo para descobrir algumas das mais belas esculturas católicas de todos os tempos.