O tempo está sombrio, mas os cafés reabriram. Os telefones celulares assumiram o controle. Também no campo da comunicação, o coronavírus acelerou mudanças. Na porta do bar, o cliente escaneia o QR Code com ar de quem já sabe o que tem de fazer. Certo de seus direitos, vagamente orgulhoso, ele olha ao redor e entra. Lá dentro, sem saber onde colocá-lo, mantém o telefone na mão.
O desconfinamento jogou nossos concidadãos em lugares amigáveis, mas não para se falarem: eles se viram as costas, cada um curvado sobre uma tela minúscula. Eles enviam sinais digitais para um interlocutor invisível. Recebem mensagens de quem já conhecem (ou não). O mundo inteiro está na palma de suas mãos.
Fomos ensinados - e sabíamos por experiência própria - que o Reino de Deus está no fundo de nossos corações. Agora somos ensinados - e vemos com nossos próprios olhos - que o reino do mundo está na palma de nossas mãos. Mas nossas mãos não podem mais abrir: o telefone cairia.
Esta manhã, passei em frente ao portão de uma faculdade. Chovia. O ar cheirava a asfalto úmido, o cheiro cinza de volta às aulas. Agora, todos os universitários estão à margem. Cada um por si. Ninguém ri mais. Eles estão todos encostados na parede. Mesmo os mais velhos. Eles não largam de seus telefones. O que eles estão lendo? Mistério. Para quem eles estão escrevendo? Não sei. Eles estão com os olhos baixos. Como viverá esta geração, alimentada pela virtualidade, no confronto com a realidade da história, o choque de corpos e objetos e o verdadeiro trovão que já ouvimos ribombar no horizonte? Quem pode dizer isso?
Nossa imaginação está tão perturbada! Eu sabia a hora em que nos falávamos cara a cara. Conheço a idade dos olhares trocados. Os telefones celulares ainda não existiam. Naquela época, as coisas eram reais e nas caixas de supermercado os rótulos apenas diziam o que eles tinham a dizer. Um pacote de arroz mencionava apenas “arroz”. Em um pacote de lentilhas, lia-se simplesmente: "lentilhas". E um telefone era usado apenas para telefonar. Conversávamos um com o outro. Nos tocávamos. Olhávamos um para o outro. Os olhos de uma garota diziam simplesmente: "Eu sou uma garota", e isso era o suficiente para encantar o mundo.
Quando os telefones se tornaram móveis, o arroz tornou-se “extra”, as lentilhas “reais” e o açúcar “puro”. Pureza se tornou uma tendência. Mas as coisas não param por aí. Nos últimos anos, os rótulos mudaram de lado. Começaram a gabar-se não do que a caixa contém, mas do que não contém: já não se tratava de ser açúcar puro, mas sem açúcar. Sem açúcar, sem corante, sem aditivos, zero: a busca pela pureza se transforma em uma obsessão com o nada.
Triunfo da virtualidade! Com um toque de moralidade no topo: o Nutri-Score. Nossos telefones de última geração nos conectaram ao mundo, mas o mundo está vazio.