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Quando a violência nossa de cada dia se torna inadmissível

MOISE
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Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 13/02/22
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Por mais absurdo que seja, a afirmação dum dos algozes de Moïse, a de que precisava descarregar a raiva, reflete uma condição geral de toda uma sociedade

Estamos longe de viver em um mundo pacífico e justo. A violência, em maior ou menor grau, é uma constante na vida da imensa maioria das pessoas. Estamos habituados a ela, de forma quase imperceptível. Contudo, em algumas ocasiões ela se torna particularmente escandalosa e inadmissível. Foi o caso do espancamento até a morte do jovem congolês Moïse Kabagambe, no dia 24 de janeiro último. Uma semana depois, Durval Teófilo Filho foi assassinado por um vizinho, que erroneamente o confundiu com um assaltante.

Atos de violência contra cidadãos inocentes ou mesmo contra criminosos que não foram julgados e são condenados de forma arbitrária e desproporcional pela turba, infelizmente, são frequentes no Brasil. O sociólogo José de Souza Martins, estudioso do tema, estima que atualmente ocorram diariamente cerca de dois linchamentos ou tentativas de linchamento no Brasil. Um número crescente em relação a um passado recente!

É de se comemorar que os gestos de repúdio a esses atos de violência sejam cada vez mais comuns entre nós. Contudo, ironicamente, num desses atos, ocorrido em Curitiba, os manifestantes invadiram uma igreja, revelando também uma certa violência e um desrespeito ao outro (ainda que, é bom frisar, nem de longe comparável aos assassinatos contra os quais se protestava). Se, em teoria, o progresso social e o desenvolvimento deveriam ir justamente no sentido de diminuir a violência social e aumentar a segurança do cidadão, por que essas formas de violência permanecem tão vivas e tão absurdas?

A violência numa sociedade que não acolhe a pessoa

Raras vezes nos sentimos acolhidos em nosso cotidiano. Um certo sentimento de alívio e de paz que sentimos ao chegar em casa, ainda que justo, reflete esse mal-estar que permanece quase como uma constante em nossa vida social. Como é difícil enfrentar a segunda-feira! Não só porque o trabalho demanda esforço e os prazeres do lazer ficaram para traz. Também porque o mundo do trabalho é hostil, cheio de inseguranças, mortificações e sacrifícios. As interações sociais, desgastantes. Por mais absurdo que seja, a afirmação dum dos algozes de Moïse, a de que precisava descarregar a raiva, reflete uma condição geral de toda uma sociedade. Essa raiva também explica muitos casos de violência doméstica, onde o agressor descarrega em esposas e filhos as frustrações e ressentimentos adquiridos na vida social. A maioria de nós controla essa raiva, o que não quer dizer que não a sintamos muitas vezes – e que num dado momento, movidos pela violência coletiva, não possamos fazer coisas que racionalmente consideraríamos inaceitáveis.

Essa observação não quer inocentar ou justificar ninguém. Muitos de nós sentem frustração ou raiva, nem por isso saem espancando os outros. Temos a liberdade e a consciência moral justamente para superar esses comportamentos instintivos. Contudo, é importante reconhecer que tais problemas existem, se queremos enfrentá-los de modo eficiente e combater a violência.

A violência impera onde falta a justiça

A insuficiência da justiça é outro problema que não pode ser esquecido. A impunidade dos poderosos – e mesmo de muitos criminosos – nos escandaliza e nos torna descrentes da justiça que deveria ser garantida pelo Estado. Diante disso, muitas vezes as pessoas se sentem tentadas a fazer justiça com as próprias mãos ou a validar a ação de “justiceiros”. O problema é que esse tipo de comportamento, mesmo que castigue um eventual contraventor (nem entro na questão das vítimas inocentes), colabora para aumentar a espiral de raiva e violência, aumentando a insegurança. Ira e violência geram mais ressentimento e raiva. Mesmo que aparentemente tragam uma paz e uma justiça momentâneas, deixam a violência “fermentando”, envenenando o coração dos mais frágeis e pronta para explodir mais adiante.

Aqui, as campanhas pelo “direito da população se armar e se defender” trazem um outro agravante ao problema. Todos nós temos realmente esse direito, mas nem por isso pode ser conveniente exercitá-lo... O Estado tem (ou deveria ter) mecanismos para garantir a segurança dos cidadãos (como policiais adequadamente treinados para o uso de armas), a aplicação da justiça (tribunais onde acusados podem se defender e as melhores punições podem ser decididas) e a recuperação dos infratores (boas prisões, com programas educativos e laborais). Ops! Parece que não temos nada disso funcionando no Brasil? Então temos que lutar por tudo isso, pois essas são as condições para que tenhamos justiça sem violência na sociedade... Se quisermos nos defender e/ou fazer justiça com as próprias mãos, estaremos apenas aumentando o problema, postergando sua adequada solução. Nações seguras são aquelas onde o Estado consegue cuidar da segurança dos cidadãos, não aqueles em que os cidadãos se autodefendem numa espécie de faroeste moderno.

Construir uma sociedade de paz

Para construir uma sociedade onde reine a paz, é fundamental educar as futuras gerações ao respeito mútuo, ao reconhecimento dos direitos de todos e à empatia com os que sofrem. Sem dúvida, o Estado tem a obrigação de garantir a segurança dos cidadãos e coibir a violência, mas não conseguirá exercer sua função sem um consenso social sobre os valores que fundam uma convivência pacífica.

Por outro lado, criar células de acolhida, onde a pessoa supere o clima hostil e opressivo que sente na convivência social, é uma tarefa fundamental de todas as comunidades religiosas. A percepção de que “Deus é amor” pode ser mais clara em algumas religiões do que em outras, mas todas proclamam o amor de Deus para com seus fiéis. Essa é uma contribuição fundamental do espírito religioso para a construção do bem comum. Não podemos, contudo, querer viver esse clima de acolhida como que numa “bolha de paz” em meio a um mundo agressivo. O amor de Deus é algo que nos é dado para que aprendamos a viver o amor entre nós e proclamá-lo também aos demais, por meio de nossa solidariedade.

O senso de justiça e a empatia para com os que sofrem são, em teoria, valores fundamentais em nossas sociedades, continuamente alardeados nas mídias sociais, em campanhas e movimentos sociais. Mas sua plena realização, nesse mundo tão difícil em que vivemos, depende da experiência do amor de Deus em nossas vidas.

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