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Nem só altruístas, nem só egoístas

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Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 23/05/21
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Normas e regras sociais são necessárias para podar as plantas más que crescem na sociedade. Mas só o amor pode transmitir a semente boa, que gera frutos bons

O ser humano é, naturalmente, bom ou mau? A sociedade nos torna piores ou nos protege da selvageria inclemente? Essas perguntas atravessam a história e as culturas, indo desde as mais complexas reflexões intelectuais até as declarações mais óbvias que repetimos em nosso cotidiano. Não são especulações inúteis, justificam em grande parte nosso agir, mesmo que de forma inconsciente.

Leandro Karnal, em artigo recente, retomou esse tema. Lembrou que, nas ciências, é frequente uma falta de otimismo quanto à bondade humana. Por isso, seu texto focava justamente em obras que resgatavam casos e motivos para acreditar nessa bondade. Traz exemplos interessantes. Da minha parte, não esqueço um debate do qual participei, onde um cientista político justificava suas posições alegando que as pessoas são naturalmente egoístas e, principalmente na dificuldade, pensam primeiro em si mesmas. Duas senhoras da plateia, que não se conheciam, o contestaram dizendo que distribuíam alimento para moradores de rua e ambas haviam visto pobres que estavam passando fome dividirem seu prato de comida com outros. Por isso, elas sabiam que o egoísmo não dá, obrigatoriamente, a última palavra nas decisões humanas.

Não somos nem totalmente bons, nem totalmente maus. A tensão para o bem e a propensão para o mal coexistem em todos. Quando nos auto-observamos, constatamos essas duas tendências em nós mesmos. Nas belas palavras da Gaudium et Spes, “toda a vida humana, quer singular quer coletiva, apresenta-se como uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas” (GS 13). Contudo, procuramos continuamente negar essa ambiguidade, valendo-nos de esquemas ideológicos mais simples ou mais refinados.

Esquematicamente, acreditamos que todos somos naturalmente bons e a sociedade, opressora e injusta, nos corrompe ou que somos naturalmente maus e a sociedade, com suas normas e leis, nos protege. Curiosamente, essas duas posições ganham recortes desde políticos até etários.

O otimismo fundamental quanto à natureza humana é mais frequente entre grupos progressistas e de esquerda. Para eles, num mundo ideal de plena liberdade e igualdade, a bondade humana afloraria sempre. A sociedade, criando normas injustas e desigualdades, nos induziria ao egoísmo e ao desamor. Por isso, abolir normas e regras, eliminar as fontes de desigualdade entre as pessoas, bastaria para nos fazer seres humanos melhores. 

O pessimismo, por sua vez, aparece mais na direita política e entre os conservadores. O ser humano procura sempre seus interesses individualistas e a satisfação de seus instintos, por isso precisamos de regras sociais e normas morais que limitem a autonomia pessoal, para nosso bem e dos demais. Daí a insistência nas regras e nos mecanismos de vigilância, a importância da obediência a uma instância supraindividual que impeça a maldade de uns poucos sobre os demais (instância esta que pode ser o Estado ou os padrões de conduta hegemônicos).

Se prestarmos atenção, veremos que a posição otimista é mais comum entre os jovens, em sua condenação (frequentemente justa, é bom dizer) à sociedade adulta. Os mais velhos, escolados nos pecados de cada um e da sociedade em seu conjunto, tendem a concordar mais com a visão pessimista, creditando o otimismo à “ingenuidade” dos jovens.

Sabemos que as duas posições, se absolutizadas, são falsas, mas nem sempre estamos dispostos a aceitar as ambiguidades tanto das pessoas quanto das regras sociais... E a modalidade mais frequente dessa dicotomia entre bem e mal, bondade e maldade, é a crença de que tudo que pensamos e fazemos é bom, enquanto tudo que nossos adversários pensam e fazem é mal. Nossos mestres e aliados estariam imbuídos de uma espécie de aura de infalibilidade em todas as suas ideias e ações, enquanto nossos adversários estariam no polo oposto, sempre errados.

Num contexto polarizado como esse em que vivemos, reconhecer nossos erros, ou os acertos de nossos adversários, parece ser uma submissão ao outro, um reconhecimento tácito de seu poder sobre nós. Não nos apercebemos que, agindo desse modo, nos tornamos menos críticos, perdemos o discernimento necessário para julgar as coisas e até para mantermos nossa liberdade. Todos – nós e nossos adversários – acertamos e erramos. Quanto mais estamos abertos ao reconhecimento dessa verdade, mais livres estamos para discernir o que é justo e para nos relacionarmos com todos, sem sermos dominados ideologicamente por ninguém.

O ser humano é como a terra da parábola do semeador (Mc 4, 3-9). Pode ser terra pedregosa ou terra fértil, como mostra a parábola, mas também – é bom lembrar – precisa da semente para frutificar. Todos vivenciamos tanto o bem quanto o mal que há em nós e no mundo. Mas, para que essa vivência se torne experiência de vida e sabedoria, precisamos de uma chave de compreensão adequada. Sem isso, podemos nos tornar como o indivíduo que na juventude se rebelava contra todas as regras, achando que faria tudo certo se fosse livre, e na velhice condena toda autonomia, acreditando que sem regras a pessoa só comete erros. Sem essa semente de discernimento, seguimos ou a doutrinas permissivas, que não nos alertam contra erros concretos, ou a moralismos intransigentes, que veem o mal mesmo onde ele não existe.

“Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo” (GS 22). Tanto para ascender a toda a nossa potencialidade de fazer o bem quanto para reconhecer o nosso mal, precisamos da experiência do amor que se torna misericórdia. Mas esse é um processo educativo, que – para os cristãos – se inicia com o encontro com Cristo, e continua por toda a vida. Somos educados, por aqueles que nos amam numa postura justa, a descobrir o amor e amar os demais. Sem a semente desse amor, o altruísmo não cresce adequadamente em nós. Por outro lado, se recebemos uma semente má, cresce em nós uma planta má, que dá frutos maus.

Normas e regras sociais são necessárias para podar as plantas más que crescem na sociedade. Mas só o amor pode transmitir a semente boa, que gera frutos bons. 

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