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A mentalidade católica e o sofrimento

Jesus Cristo na Cruz

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Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 24/09/23
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Este preconceito, apesar de datado, ainda hoje se reflete na visão que muitos católicos e não católicos têm sobre o vínculo entre religião e sofrimento. Entenda:

Recebi um pequeno vídeo em que o filósofo e educador Rubem Alves (1933-2014) fala sobre o sofrimento na mentalidade católica. Teólogo presbiteriano, professor da Unicamp, dedicado aos temas de educação e filosofia, ele foi um dos mais brilhantes e simpáticos intelectuais brasileiros de sua geração. Representava um humanismo em diálogo com o cristianismo, otimista e carregado de afeto. Nem por isso estava correto em tudo aquilo que dizia.

No vídeo, Rubem Alves diz que tem “um grilo sério com gente de convento, porque toda a nossa tradição espiritual ocidental, é baseada no sofrimento” e que as pessoas religiosas, ao irem fazer promessas, oferecem coisas sofridas e não coisas prazerosas... Bem, em primeiro lugar é preciso recordar que ele falava de coisas com as quais não estava familiarizado (como presbiteriano tinha pouco contato com a vida monástica e conventual), repetindo preconceitos muito em voga na sua época (difundidos inclusive por católicos com uma visão distorcida da própria Igreja).

Contudo, esse preconceito, apesar de datado, ainda hoje se reflete na visão que muitos católicos e não católicos têm sobre o vínculo entre religião e sofrimento. Sendo assim, o tema vale algumas considerações. Como sempre, saliento que meus comentários são os de um sociólogo buscando entender a mentalidade de nosso tempo, não os de um teólogo dando catequese...

O medo irracional à dor

A cultura moderna e pós-moderna desenvolveu um verdadeiro horror ao sofrimento e à dor. Ninguém, em tempo algum, gosta de sofrer, sentir dor ou lidar com a morte. Mas, em nosso tempo, vivemos uma esperança utópica de chegarmos, ainda nessa vida, a um paraíso utópico onde não haverá mais dor, nem sofrimento, onde tudo será perfeito e todos seremos permanentemente alegres e felizes – uma realização atualizada da “terra sem males”, dos povos originários da América do Sul. A dura realidade cotidiana dos pobres, dos fracos e dos doentes se tornou, com inegável justiça, motivo de escândalo e indignação. E, quando se trata de almejar a felicidade, frequentemente ignoramos os choros e tristezas dos ricos, dos famosos e saudáveis – sinal inequívoco que o sofrimento, como a chuva, cai sobre bons e maus, ricos e pobres, sãos e doentes, sobre os que têm e sobre os que aparentemente não têm motivo para sofrer.

O passar do tempo e a desilusão com as muitas utopias em voga no século XX nos explicam a sabedoria da Igreja: a questão não é fugir dos sofrimentos, devemos combater aqueles que podem ser evitados, mas não todos, pois muitos são inevitáveis... E, para o sofredor, no auge do sofrimento, sua dor sempre parece maior do que todas.

O sofrimento é superado pelo amor

Dificilmente encontraremos, no catolicismo contemporâneo, um documento sobre o tema mais profundo e grandioso que Salvifici doloris, de São João Paulo II. Publicada em 1984, três anos depois do atentado que quase o matou e comprometeu seriamente sua saúde, não é apenas uma reflexão teórica sobre o sofrimento, mas reflete a própria experiência espiritual do Papa.

O texto, em síntese, propõe que o ser humano não pode escapar do sofrimento, mas foi feito para superá-lo; ser capaz de descobrir a felicidade não tentando fugir ou se esquecer da dor, mas aprendendo a conviver com ela, dando-lhe um sentido. Deus, conhecendo os sofrimentos humanos, não faz um milagre global que o encerre, mas dá seu próprio Filho, para que Ele padeça com as maiores dores humanas. Não é o caminho de evitar o sofrimento, mas sim aquele que descobre o seu significado, vendo-o como parte do diálogo de amor entre nós e Deus, entre nós e aqueles que amamos, as coisas que nos cercam e os desafios que enfrentamos.

A superação do sofrimento se dá na descoberta de seu sentido: poder vê-lo como gesto de amor, encontrar – na própria dor – os sinais do amor que nos acolhe e com o qual procuramos acolher aos demais. Aos que se julgam poderosos e inabaláveis, evitar o sofrimento pode parecer uma alternativa viável. Para o pobre, o doente, o fraco e o sofredor, a única alternativa realmente viável é oferecer a própria dor, encontrar nela os sinais do amor que pode dar-lhe sentido.

O catolicismo não fala do sofrimento porque seus religiosos gostem de sofrer ou gostem de fazer os outros sofrerem. Falam do sofrimento porque o amor ao ser humano, tal como é a sua vida, nos obriga a olhar para o sofrimento e buscar o seu sentido.

Acolher o pobre que sofre

Uma outra faceta dessa questão é um certo apego a uma espiritualidade centrada na dor que acompanha particularmente os povos latinos, tanto no Velho quanto no Novo Mundo. Um perfil inegavelmente emotivo nos faz procurar a identificação de nosso sofrimento com aquele dos santos e do próprio Cristo. A arte religiosa barroca está repleta de imagens de Jesus torturado e sofrendo, santos convulsionados pela dor e coisas assim.

Essas imagens parecem encurtar a distância entre nós e Deus. Parece ser mais fácil crer que somos compreendidos e que seremos confortados, nessa vida ou na outra, quando imaginamos os sofrimentos de Cristo e dos santos. Entre os pobres e os doentes, o próprio sofrimento parece ser a última coisa a ser ofertada. Como pode um doente terminal oferecer coisas prazerosas e seu cotidiano se tornou um permanente martírio no caminho para a morte? Que pode o pobre injustiçado oferecer pelo bem de seu filho? Uma beleza e uma alegria que não tem?

A Igreja, em sua sabedoria, não fala do sofrimento por comprazer-se dele, mas sim porque seu coração de Mãe se volta, antes de tudo, para aqueles seus filhinhos para os quais nada mais restou no mundo além da própria dor. Esses são os últimos, que para ela são os primeiros. Seu caminho de superação do sofrimento não representa um remoer-se em tristeza, mas o sinal mais luminoso de que o amor pode trazer a alegria em qualquer situação.

Um exercício ascético

Voltando ao vídeo, Rubem Alves fala que ninguém oferece a Deus coisas boas, só coisas dolorosas. Não é verdade, ainda que – como vimos – a dor seja muitas vezes a única oferta possível ao sofredor. Mas muitos oferecem a própria alegria a Deus, só que nesses casos, a oferta vem, naturalmente, mais ligada ao agradecimento que ao pedido.

Existe, contudo, mais uma questão a ser abordada nesse tema. Todo caminho ascético, assim como todo treinamento esportivo, implica em esforço. Todas as religiões, não só o cristianismo, desenvolveram práticas que mortificam o corpo para desenvolver o espírito. Jejuns, abstinências, posições inicialmente incômodas fazem parte dos exercícios ascéticos até mesmo de pessoas agnósticas que procuram um aperfeiçoamento espiritual.

Nesse sentido, a Igreja recomenda que exercícios ascéticos sejam escolhidos como ofertas para Deus, quando se fazem promessas. Mas, mesmo nesses casos, o magistério católico lembra que Deus nos atende por um ato de amor gratuito, não “compramos” a graça com nossos esforços. Uma ideia de ofertar coisas dolorosas só por serem dolorosas, sem valor ascético, pode estar presente na religiosidade popular, mas não corresponde a nenhum ensinamento católico.

Além disso, no caso do cristianismo, sempre valem as admoestações: “o sacrifício que apraz ao Senhor é o coração contrito” (Sl 51, 17); “é amor que eu desejo e não sacrifícios, conhecimento de Deus mais do que holocaustos" (Os 6, 6). É o amor que supera o sofrimento; ele, o amor, é a única oferta que Deus quer realmente de nós.

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