O Supremo Tribunal Federal (STF) voltará, no início de 2024, a julgar a possibilidade de descriminalização do porte de drogas no Brasil, em particular a maconha. Poucos temas são tão impregnados de ideologia quanto este. Por outro lado, o tema é realmente complexo e tem uma boa dose de relatividade.
Seja qual for a posição de cada um, ninguém de boa-intenção gostaria de ver drogas pesadas serem oferecidas a uma criança pequena, ou uma sociedade que matasse sumariamente todo drogado e todo vendedor de drogas. O sucesso maior ou menor de uma estratégia com relação às drogas depende muito da forma como é executada. Propostas nem tão boas, se bem executadas, podem dar melhores resultados do que propostas ideais, porém mal realizadas. Mas isso passa longe dos discursos ideológicos, de um lado e de outro.
Além disso, para entendermos adequadamente o problema, temos que considerá-lo em três aspectos. O primeiro é o cultural: qual o papel da liberdade pessoal e da autoridade do Estado numa política para as drogas? Depois, temos um aspecto social: é bastante óbvio que drogas são perigosas para a saúde (ainda que algumas, como álcool e tabaco, sejam aceitas quase universalmente), como prevenir seu uso abusivo? Por último, mas não menos importante, o aspecto policial: como combater o crime organizado que explora o narcotráfico?
São muitos aspectos, todos complexos. Sendo assim, vejamos nesse artigo apenas o cultural, deixando os demais para outros artigos futuros.
Duas comparações incômodas: o álcool e o tabaco
Substâncias psicoativas, que alteram a percepção, o humor, a consciência e o comportamento, são sabidamente danosas tanto para os indivíduos quanto para a sociedade. Sendo assim, por que existe todo esse movimento para liberar o consumo da maconha? Qual seria a lógica desse movimento?
Teorias conspiratórias, invocando intenções de destruir famílias e manipular mentes não se sustentam para quem conhece tantos porta-vozes desse movimento bem-intencionados. A grande maioria dos defensores da descriminalização do porte de drogas agem de boa-fé, se espelhando nos casos do álcool e do tabaco.
O consumo moderado de álcool não é, obrigatoriamente, danoso (ainda que também não seja, obrigatoriamente, seguro). Ao longo dos séculos, a humanidade aprendeu a desenvolver bebidas e hábitos que minimizam os riscos do seu excesso. A sensibilidade e o risco de tornar-se dependente, perdendo inclusive o autocontrole, varia de pessoa para pessoa, mas cada um acredita que será capaz de consumir moderadamente, não se tornando dependente.
A Lei Seca nos Estados Unidos vigorou de 1920 a 1933, proibindo a produção, venda e transporte de bebidas alcoólicas. Estudos estatísticos mostraram que houve uma diminuição das mortes em acidentes de trânsito naquele período – portanto o álcool, mesmo consumido em quantidades socialmente aceitas, pode ser perigoso. No entanto, a lei foi revogada, pois contribuiu para o crescimento do crime organizado e para o aumento da corrupção.
Assim, imagina-se que as drogas ilícitas, se liberadas, terão um destino similar ao álcool. Passarão a ter um consumo moderado, dentro de níveis socialmente aceitáveis, e sem contribuírem para o crime organizado. E se alguém se prejudicar seriamente pela dependência, será um problema individual da pessoa.
A história dos cigarros de tabaco é bem diferente. Permitidos, foram amplamente apresentados pela propaganda como elementos virilidade masculina e até de charme feminino. Até que o câncer no pulmão, causado pelo fumo, se tornou um problema grave de saúde pública e os tribunais começaram a dar ganho de causa para vítimas que alegavam ter adquirido o câncer em função das campanhas publicitárias das fábricas de cigarro.
No mundo todo, as políticas antitabagismo têm reduzido o consumo do tabaco, sem necessidade de uma proibição legal. No Brasil, de 1989 a 2010, a queda do percentual de fumantes foi de 46%. Mesmo não sendo proibido, o consumo do tabaco vem diminuindo graças a campanhas que restringem a publicidade, conscientizam para os perigos do fumo, proíbem de fumar em lugares públicos, etc.
Atualmente, a sociedade está convicta de que o vício de fumar é danoso tanto para a pessoa quanto para a sociedade, mas tem-se a ilusão que drogas “leves” como a maconha não trariam danos sociais e seu consumo poderia ser confiado à autonomia individual. Ignora-se tanto seus efeitos danosos quanto a força daqueles que induzem as pessoas ao consumo e à dependência.
Liberar sem educar é perigosíssimo
Lícito, o álcool é uma droga potencialmente danosa – e, por ser amplamente consumido, causa muito mais mortes e danos que as drogas ilícitas. Já a proibição às drogas ilícitas foi se consolidando ao longo dos anos. A partir daí, argumenta-se que as proibições são seletivas, determinadas por interesses econômicos e políticos. Isso não muda o fato de que drogas são potencialmente danosas – e sua liberação, perigosa; mas cria-se a ideia de que seria uma ideologia repressora, e não o perigo em si, a causa da proibição.
Por outro lado, as campanhas de esclarecimento mostraram à sociedade que o tabaco é perigoso, levando a uma redução do tabagismo sem proibição. Isso não significa que as drogas ilícitas devem ser permitidas. Diminuir um fator de risco não implica em poder aumentar outro... Contudo, mostra que, quando existe vontade política e empenho, campanhas educacionais e medidas restritivas podem ser bem-sucedidas no combate à drogadição.
No Brasil, contudo, se fala muito em descriminalização do porte de drogas, mas muito menos em campanhas drásticas, como aquelas contra o tabaco, alertando a juventude dos perigos do uso de drogas. Difícil imaginar que uma combinação entre liberação do uso e falta de campanhas de esclarecimento levará a outra situação que não a de uma catástrofe anunciada.
E a liberdade individual?
Porém, quando o STF discute a descriminalização do porte da maconha, está considerando não tanto esses aspectos, mas sim o princípio constitucional da liberdade individual. O conceito de fundo é que cada um é livre, num Estado democrático, para fazer o que bem entender, desde que não prejudique aos demais. Mas essa concepção nos engana em dois aspectos.
Em primeiro lugar, nessa visão, a autonomia – e não a liberdade – é o valor supremo. Mas a autonomia é apenas uma condição para a liberdade. Fazemos a experiência da liberdade quando usamos nossas potencialidades para nos realizarmos como pessoa, não simplesmente quando fazemos o que queremos. Se usamos a autonomia para optar por aquilo que reduz nossas potencialidades, como acontece com a droga, não caminhamos rumo à liberdade, mas sim em direção à dependência.
Por isso, o Estado, quando impõe limites ao uso de substâncias psicoativas, não apenas está defendendo a segurança das pessoas (uma pessoa em estado alterado pode se tornar perigosa para todos ao dirigir ou em uma simples briga). Está cumprindo o seu dever de evitar que a pessoa faça mal para si mesma.
Ah! Mas então estamos defendendo um Estado paternalista, que monitora e controla as pessoas? Não. Esse é o segundo erro dessa concepção: imaginar que as pessoas podem agir de forma totalmente autônoma, sem nenhuma influência exterior, que a vida privada pode ser totalmente desvinculada da vida pública. Contudo, na vida em sociedade, ninguém é totalmente autônomo. Mesmo que o Estado não interfira em nossas decisões, haverá o poder da propaganda, dos influenciadores sociais, da mentalidade hegemônica, dos comércios ilegais, etc.
Existe uma relação permanente entre o Estado, a sociedade e a pessoa. Nunca somos totalmente autônomos, nunca somos totalmente determinados pelo meio em que estamos. Para que sejamos o mais livres possível, cabe sim às instituições públicas (Estado, igrejas, escolas, etc.) usarem todos os meios válidos para orientarem nossa autonomia, de modo que nos tornemos cada vez mais livres. Caso contrário, seremos cada vez mais presas fáceis do mal.